Governança da Cibersegurança na Era do 6G: o Desafio das Cidades Inteligentes

Michele Nogueira*

Em breve, as cidades estarão mais conectadas do que nunca. Com a chegada do 6G, não estaremos apenas diante de uma nova geração de redes móveis, mas de uma nova era de integração entre o digital, o físico e o humano. Sensores, veículos autônomos, drones, sistemas médicos e aplicações em realidade estendida funcionarão em tempo real, de forma coordenada — quase orgânica.

Mas, com esse salto, também aumentam as vulnerabilidades. A superfície de ataque cresce na mesma proporção da conectividade. Dados sensíveis circularão por milhões de dispositivos, bordas computacionais e redes autônomas. O risco, antes difuso, torna-se estrutural. E nesse cenário, a governança da cibersegurança deixa de ser um tema técnico e passa a ser uma questão crítica de política pública, infraestrutura e cidadania.

Governar a segurança cibernética em um ambiente 6G é mais do que proteger sistemas. É garantir que as cidades possam inovar com responsabilidade, respeitar direitos e reagir a ameaças com resiliência. Este ensaio propõe uma reflexão sobre essa nova fase, a partir de frameworks já existentes, da evolução tecnológica e dos desafios éticos e sociais que temos pela frente.


1. O que muda com o 6G nas cidades inteligentes?

Se o 5G representa uma revolução — com latência reduzida e alta capacidade de transmissão — o 6G vai além: ele propõe integrar visão computacional, realidade aumentada, comunicações sensoriais e até interfaces neurais. Trata-se de transformar não apenas a velocidade de conexão, mas a própria forma como interagimos com o espaço urbano. Imagine semáforos que sentem o fluxo de pedestres em tempo real e reprogramam os cruzamentos. Ou ambulâncias que navegam pelas ruas guiadas por inteligência artificial coordenada com os semáforos e sensores da cidade. Com o 6G, essas possibilidades deixam de ser ficção. Ao mesmo tempo, cresce a dependência de sistemas hiperconectados, baseados em dispositivos com pouco poder de processamento e segurança frágil. As cidades inteligentes passam a operar como organismos vivos — mas organismos que podem ser atacados, manipulados ou paralisados. O futuro conectado será também, inevitavelmente, um futuro de risco.


2. Quais os novos riscos e vulnerabilidades trazidos pelas redes 6G?

Com o 6G, a promessa é de um mundo onde tudo está conectado — não apenas smartphones e computadores, mas também óculos inteligentes, sensores de movimento, implantes biomédicos e dispositivos que ainda nem foram inventados. Essa hiperconectividade, embora fascinante, também inaugura um novo nível de exposição digital. A superfície de ataque cresce exponencialmente: cada sensor urbano, cada dispositivo de borda e cada aplicativo em tempo real representa um ponto de entrada potencial para cibercriminosos. A complexidade das redes 6G — distribuídas, dinâmicas, autônomas — dificulta ainda mais o monitoramento e a resposta a incidentes.

Os riscos deixam de ser meramente técnicos. Estamos falando da possível interrupção de serviços públicos essenciais, da manipulação de dados sensíveis (como localização em tempo real ou padrões de comportamento) e da violação de privacidade em larga escala. As cidades podem ser alvos de espionagem digital, sabotagens e ataques coordenados com impacto direto na vida dos cidadãos.

Além disso, novas tecnologias como inteligência artificialblockchain e computação quântica não são apenas soluções — também podem ser ferramentas de ataque. Os algoritmos de IA são usados para identificar brechas, automatizar invasões ou burlar sistemas de autenticação. E tudo isso em tempo real, com decisões sendo tomadas em milissegundos. Nesse cenário, as estratégias tradicionais de segurança já não são suficientes. É necessário pensar em camadas de proteção descentralizadas, detecção comportamental baseada em IA e, principalmente, em governança colaborativa, onde a responsabilidade pela cibersegurança é compartilhada entre governos, empresas e cidadãos.


3. Por que a governança da cibersegurança se torna ainda mais crítica com o 6G?

À medida que as tecnologias evoluem e as redes se tornam mais complexas, a segurança não pode mais ser tratada como um acessório técnico. Com o 6G, ela precisa ser pensada desde o início, integrada aos projetos, políticas e decisões que moldam as cidades. É aí que entra a governança da cibersegurança — não como um conjunto de ferramentas ou normas isoladas, mas como um sistema de princípios, processos e responsabilidades que orientam como proteger dados, infraestruturas e pessoas. Em outras palavras: é a engrenagem que articula quem decide, quem executa, quem fiscaliza e quem é protegido.

No contexto do 6G, a governança se torna ainda mais desafiadora porque não existe mais um “centro” único de controle. As decisões são distribuídas: sensores em postes de luz, câmeras em semáforos, aplicativos em celulares, algoritmos em servidores em nuvem — todos interagem em tempo real. A proteção de um depende da integridade do outro. Isso exige alinhamento entre múltiplos atores: governos municipais, operadoras de telecomunicações, desenvolvedores de tecnologia, universidades, startups e a própria população. Cada um tem um papel na prevenção de ataques, no respeito à privacidade e na construção de confiança digital.

A governança também deve ser adaptativa. As ameaças mudam, os sistemas se atualizam e as leis precisam acompanhar esse ritmo. Estruturas rígidas e centralizadas não dão conta da complexidade das redes 6G. Por isso, é fundamental construir mecanismos de auditoria contínua, transparência e participação social.


4. Como frameworks como NIST, ISO/IEC 27001 e COBIT podem se adaptar a esse novo cenário?

Felizmente, não partimos do zero. Há décadas, modelos de governança vêm sendo desenvolvidos para orientar organizações públicas e privadas na gestão da segurança da informação. Os mais consolidados — NIST Cybersecurity FrameworkISO/IEC 27001 e COBIT 2019 — oferecem bases importantes para enfrentarmos os desafios do 6G. Mas será que estão prontos para isso?

NIST CSF 2.0: segurança como estratégia de negócio

A versão mais recente do NIST introduziu uma função essencial: “Governar”, que complementa as já conhecidas etapas de Identificar, Proteger, Detectar, Responder e Recuperar. Essa mudança sinaliza que a cibersegurança deve ser tratada como um risco estratégico, no mesmo nível que finanças, operações ou compliance. No contexto urbano e conectado, o NIST pode ser adaptado para avaliar riscos em tempo real, definir responsabilidades entre atores públicos e privados, e estruturar políticas municipais de segurança cibernética.

ISO/IEC 27001: gestão integrada e foco em privacidade

Essa norma fornece diretrizes para a criação de Sistemas de Gestão da Segurança da Informação. Em ambientes 6G, sua força está na capacidade de formalizar processos contínuos de auditoria, prevenção e resposta, fundamentais para garantir integridade e confidencialidade.

COBIT 2019: alinhamento institucional e governança de ponta a ponta

Voltado à alta administração, o COBIT oferece uma abordagem holística para integrar tecnologia, objetivos estratégicos e processos de controle. No contexto do 6G, ele pode ser usado como ponte entre governança organizacional e gestão de riscos tecnológicos — desde que combinado com abordagens mais técnicas.


5. Como preparar o ecossistema urbano para uma governança que equilibre conectividade, inovação e proteção digital?

Não há uma receita única para cidades inteligentes seguras. Mas há princípios que norteiam qualquer esforço de governança no contexto do 6G: responsabilidade compartilhada, segurança desde o design e foco contínuo na proteção dos direitos digitais.

A primeira mudança é de mentalidade: segurança e inovação não são inimigas. Pelo contrário, a inovação só se sustenta no longo prazo se houver confiança — e confiança nasce da transparência, da previsibilidade e da proteção de dados e serviços. A segunda frente é estrutural. Os governos locais precisam criar comitês permanentes de cibersegurança urbana, integrando especialistas, operadoras, universidades e representantes da sociedade civil. A terceira frente é educacional e cultural. Cidadãos, gestores públicos e profissionais de TI devem ser capacitados sobre boas práticas, riscos emergentes e uso consciente dos dados.

Por fim, é fundamental investir em pesquisa e desenvolvimento. Cidades que liderarem a aplicação de IA na defesa digital, computação segura em bordas e novos modelos de privacidade estarão mais preparadas para enfrentar os riscos emergentes do 6G.


Conclusão

A chegada do 6G representa mais do que uma nova fase da conectividade: representa a transformação completa da infraestrutura urbana digital. As redes invisíveis interligarão tudo — de dispositivos a decisões. Mas essa promessa tecnológica vem acompanhada de desafios reais: ameaças mais sofisticadas, riscos sistêmicos e uma nova geopolítica dos dados. Nesse cenário, a governança da cibersegurança deixa de ser uma recomendação técnica para se tornar uma condição de legitimidade, confiança e sustentabilidade. A proteção de redes precisa caminhar com o respeito aos direitos digitais. Se queremos que nossas cidades se tornem verdadeiramente inteligentes, precisamos garantir que também sejam seguras, justas e humanas. O 6G pode ser o motor dessa evolução — mas só se a governança estiver no centro do caminho.

*Michele Nogueira é Professora Associada do Departamento de Ciência da Computação da UFMG, pesquisadora 1D do CNPq, coordenadora do projeto CNPq Mulheres de Exatas em Cibersegurança (METIS) e membro do comitê estratégico da IEEE Communications Society. Editora da Coluna Atualidades em Cibersegurança da Revista Horizontes da SBC e membro do INCT ICoNIoT.


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